“Em viagens, somos só ‘fulano, do lugar tal'”

Alícia Uchôa, coautora da biografia de Gabriel Buchmann, fala da simplicidade do viajante

“Viajando é como recarregamos nossas energias e nos encontramos conosco sempre. Não temos apostos vinculados a profissões, carreiras, famílias tradicionais ou qualquer coisa do tipo. Somos só ‘fulano do lugar tal'”

A reflexão é da jornalista Alícia Uchôa, coautora de ‘Gabriel, as montanhas e o mundo’ (Autografia), uma espécie de anatomia das (incríveis) viagens do economista Gabriel Buchmann, morto em 2009 após escalar o Monte Mulanje, no Malauí. Escrito a quatro mãos com a mãe de Gabriel, Fátima Buchmann, o livro é uma compilação de histórias divertidas e tocantes vivenciadas por um viajante nato, que buscava ser sustentável em suas passagens.

Diferentemente do filme ‘Gabriel e a montanha’, de Fellipe Barbosa, o livro não se centra apenas na expedição africana, a última do carioca. Buchmann havia ganhado uma bolsa para fazer doutorado em políticas públicas na Califórnia e estava rodando a Ásia e a África para pesquisar a pobreza. O livro de Alícia detalha a viagem inteira, que durou quase um ano, além de aventuras prévias em relatos, depoimentos e até de forma epistolar, com diversas trocas de e-mails (e excelentes dicas para viajantes).

A morte de Buchmann ganhou o mundo, já que o rapaz ficou desaparecido por 19 dias antes de descobrirem o trágico desfecho de sua última escalada.  As montanhas do título do livro e do filme exerciam forte magnetismo em Buchmann, que havia escalado o Kilimanjaro (Tanzânia) na mesma viagem e era fascinado por esse tipo de aventura. Vencido pela hipotermia no Mulanje, deixou uma série de anotações, correspondências e fotos que serviriam para seu estudo sociológico, mas acabaram sendo usados no roteiro do longa e no livro – ambos lançados em novembro de 2017. 

SUSTENTABILIDADE E TROCAS CULTURAIS

Os registros não foram em vão. “Se o livro puder inspirar as pessoas a botarem uma mochila nas costas e saírem pelo mundo, já terá valido a pena”, espera Alícia. O economista é um exemplo perfeito de viajante sustentável, posto que tinha propositalmente orçamentos exíguos e buscava o contato com os locais em todos os serviços que usava: hospedando-se e fazendo refeições na casa de habitantes, consumindo o mínimo possível e evitando os programas ‘turistões’.

Gabriel Buchmann acreditava que até a roupa que você usa pode criar empatia

As experiências em países como Índia, Camboja, Irã, Tanzânia, Quênia, entre outros, são, de fato, inspiradoras nesse sentido. “Acho que a primeira lição dele é que viajar é possível. Ele nunca foi um cara rico, mas com muita pesquisa, planejamento e alguma cara-de-pau, sempre viajou muito. Na viagem de volta ao mundo, seu orçamento era de 500 dólares por mês“, revela Alícia.

No filme e no livro, é possível ver que a economia nos gastos não foi apenas favorável no sentido material, mas também nos relacionamentos. É emocionante ver os depoimentos de pessoas que cruzaram com ele na África e a marca que Buchmann lhes deixou. No lugar de gastar com compras e passeios caros, o economista teve a chance de pagar, por exemplo, um ano de escola do filho de um dos seus anfitriões – com apenas 40 dólares. 

Longe de fazer caridade ou filantropia, essas ações eram formas de retribuir a hospitalidade e o aprendizado obtido em suas passagens. “Gabriel era um curioso e um bom ouvinte. Essa escuta atenta, que fazia as pessoas se sentirem especiais, lhe proporcionava experiências incríveis porque abria um canal para as coisas acontecerem. Não era só sorte. Era troca, entrega. Isso faz com que uma viagem possa ser uma descoberta e não só uma lista de lugares a serem ‘ticados’ como metas cumpridas”, completa Alícia.

Fátima Buchmann (à esquerda) e Alícia Uchôa no lançamento do livro. Foto: Thiago Cortes

RESPONSABILIDADE SOCIAL NA MOCHILA

Buchmann era um economista preocupado com a pobreza, acima de tudo. Por isso, se pensarmos nos três pilares da responsabilidade social (ambiental, social e econômico), aparentemente suas ações teriam mais uma pegada social. No entanto, na opinião de Alícia, uma coisa levava à outra.  “A imersão dele no coração da Amazônia numa tribo Yanomami o fez encontrar fatores ambientais a partir da descoberta do humano, do etnográfico, do social que aquela tribo despertou neles”, exemplifica.

Ela completa dizendo que essas experiências cresciam “a partir dessas delícias que vêm quando você se abre para conhecer o ser humano e a sociedade onde ele vive, e isso se dava sempre que ele se deixava acolher pelo caminho. Montou camelos em pêlo, viu ursos panda, foi à reserva da Montanha dos Gorilas”, revela a autora, que é viajante apaixonada por aventuras na natureza. 

“Eu sou suspeita porque amo viajar pelo Brasil. Acho que a Amazônia e Bonito podem nos proporcionar vivências deliciosas, de descoberta e com respeito a natureza, sem precisar ser uma experiência ‘pasteurizada'”, opina.

Ela crê que vivemos um momento favorável para o turismo sustentável. “Acho que há mais gente pensando nisso, sim. Mas na vida de forma geral e não só durante viagens. Prova disso é que já existem grupos e agências que ajudam, por exemplo, viajantes a se candidatar a trabalhos voluntários nas comunidades que visitam”, alega.